Há ainda poucas semanas, apeteceu-me terminar um desses momentos de remanso solitário com algumas sobras de fruta do jantar. Com o pensamento em deambulações de final de dia, peguei numa faca de cozinha quando, subitamente, me saltou à vista a curva pronunciada do seu gume. Com brusquidão quase a atirei para a bancada e de imediato a troquei por outra, logo ali ao lado.
Naquele gesto súbito recuei mais de quatro décadas. Em menos de um segundo revelaram-se memórias. No lapso de um momento traí-me e deixei que muros caíssem.
O gume desgastado daquela faca é igual aos gumes das facas das gavetas de casa dos meus pais, ou daquelas que eu via pelas cozinhas das tias que em pequeno eu visitava. Eram objectos tão familiares e próximos que deles eu conhecia cada contorno e detalhe.
As facas de cozinha aferem na perfeição o passar do tempo: os seus gumes rectilíneos vão-se encurvando com rigor frio, na medida exacta da passagem dos anos.
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Trazem-me muita clarividência as horas passadas a sós no silêncio da cozinha. Embrenho-me nestas constatações enquanto hoje chega um aniversário importante. As crianças acordam para o dia de escola, vestem-se, e mergulham na correria diária que hoje lhes há-de trazer ainda mais descobertas.
Está a chegar a sua vez de começarem a reparar nas lâminas das velhas facas.
Somos todos velhas facas de cozinha.
6 comentários:
meu querido,
e o meu tlm que apitou a lembrar e eu que nao pude telefonar-te logo e a minha memória que é uma desgraça e eis que só hoje me apercebo do esquecimento.
um grande beijo de parabéns.
(e tão bonito, o teu post)
(sendo que concordo tanto contigo)
Abraço, Fêjota, seu faquista.
ssv, obrigado, e obrigado por gostares! bjs
facão, obrigado. aquele abraço.
Excelente texto FJ.
Parabéns, então :)
cs, obrigado :-)
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