Desde o dia em que se soube do Leandro, a minha hesitação em publicar este post, os avanços e os recuos, alternaram com a busca, às vezes frenética - nos media, na net, nos que me rodeiam - da opinião de outros, dos que sabem das coisas, dos que ensinam nas escolas, dos que sabem porque também lhes aconteceu... Como quem procura uma tábua para se agarrar, referências que confortem.
Tarde de mais: li já demasiadas inconsequências e ouvi outras tantas imbecilidades sem sentido.
Ao pensar no Leandro, passei ao longo destes dias por momentos da mais dura raiva e pessimismo, até outros em que vislumbrei uma ponta por onde pegar na esperança.
Quando a bestialidade nos rodeia ficamos expostos ao desnorte. Sem soluções prontas ficamos à mercê de desejos e da esperança de que algo seja feito. Porque, tal como ouvi dizer, não compreendo que se continue a falar do resto sem que um clamor atravesse o País.
É tarde de mais para o Leandro. O silêncio que o rodeou matou-o, mesmo quando o primo correu atrás dele. "A mim não me batem mais", terá dito, antes de descer até à margem, despir a roupa e entrar no rio.
É tarde de mais. Até agora pouco vi que valha a pena reter, apenas a noção da enorme necessidade de que se fale, se denuncie, se fale, se fale, se fale... Do pouco que até agora me fica, retenho o artigo da jornalista do Diário de Notícias, Helena Teixeira da Silva, de que, com o devido crédito, aqui me socorro.
Foi-me insuportável conter a emoção ao lê-lo, tal como me continua a ser insuportável não vencer a relutância em fazer este post.
Artigo do Diário de Notícias, publicado a 4 de Março de 2010
"Ontem, quarta-feira, Christian não foi à escola. No dia anterior, almoçou à pressa na cantina, saiu aflito para o recreio quando viu, mais uma vez, o corpo franzino de Leandro, primo e amigo de 12 anos, ser espancado por dois colegas mais velhos.
Depois, perseguiu o rapaz que, cansado da tortura de quase todos os dias, ameaçou lançar-se da ponte, ali a dois passos. Perseguiu-o, impediu-o. Por fim, imitou-lhe os passos, degrau a degrau, até à margem do rio Tua. O primeiro estava decidido a morrer: despiu-se, atirou-se. O segundo estava decidido a salvá-lo: despiu-se, atirou-se.
Leandro morreu - é a primeira vítima mortal de bullying em Portugal; Christian agarrou-se a uma pedra para sobreviver. Antes, arriscou a vida a dobrar: digestão em curso em água gelada. Eram 13.40 horas. Ontem não foi à escola. Os pesadelos atrasaram-lhe o sono. Acordou cansado, alheado, emudecido. Leandro não é caso único. Ele também já foi agredido.
Christian não é o super-homem; não é sequer rapaz encorpado; é um menino assustado, tem 11 anos, não terá 40 quilos, o rosto salpicado de sardas e tristeza. Os olhos dos pais pregados nele, os dele cravados no chão da sala. Não estava sozinho na luta. "Estava eu, o Márcio (irmão gémeo de Leandro), o Ricardo...", este e aquele, os nomes dos amigos como um ditado, ele encolhido, no colo um cão minúsculo a quem insistentemente afaga o pêlo. "Não conseguimos salvá-lo, já estávamos tão cansados". O lamento sabe a resignação e à inquietação de quem veio de outra escola, em Andorra, Espanha, onde "à mais pequena coisa, os professores chamavam os pais", recordam, "preocupados", Júlio e Júlia Panda, pais de Christian, filhos da terra, Mirandela, no cume de Trás-os-Montes, retornados há pouco mais de um ano, trazidos com a crise e o desemprego. Vivem agora na aldeia de Cedainhos, a 15 quilómetros da cidade, lugar estacionado no tempo, onde vivia também Leandro e onde todas as casas, com laços mais ou menos próximos, são casas da mesma família.
Um palmo acima, na mesma rua, vive a avó, Zélia Morais. Tem a cozinha cheia netos, mais de dez, netos de todas as idades, os gritos inocentes dos mais novos a misturarem-se na dor dos outros. Sabe tudo ao mesmo fado. É a imagem da desolação, ela prostrada no sofá, o coração com febre. "O meu menino era tão humilde. Todos os dias vinha saber de mim. Todos os dias", palavras repetidas embrulhadas em falta de ar. "E agora?" Agora, responde o filho Augusto, homem de meia idade que a coluna prendeu a uma cadeira de rodas, "agora, nem que tenha de vender tudo, vou até ao fim do mundo para saber quem levou o meu sobrinho a matar-se". A ameaça parece dura, dura um segundo, desfaz-se em pranto. "O meu menino sentava-se aqui comigo, conversava como adulto, era a minha companhia". Os pais de Leandro também vivem ali; não estão. "Estão em casa amiga, passaram a noite no hospital".
Ontem Christian não foi à escola. Mas na escola dele - E.B. 2,3 Luciano Cordeiro, onde partilhava o 6º ano com Leandro -, o dia foi normal. Nem portas fechadas nem luto nem explicação. O porteiro do turno da tarde entrou às 15 horas, bem disposto. "Sou jornalista, queria uma entrevista", ironizou. Tiro no pé. O JN estava lá. Perdeu o humor, convidou-nos a sair "já". A docente que saía do recinto também foi avisada, inverteu a marcha, já não saiu. Havia motivos para baterem tantas vezes no Leandro? Responde Christian: "Todos batem em todos".
Helena Teixeira da Silva
10 comentários:
O caso de bullying ocorrido em Mirandela vem expor à saciedade a gravidade desta praga. O problema já ultrapassou os portões escolares para entranhar-se de uma forma asquerosa na vida social e no local de trabalho. Porque não estamos a falar apenas de uma obsessão pelo poder, da dominação sobre um indivíduo, mas de um agressor que ameaça tornar-se num potencial criminoso. Esta forma de intimidação pode ter tido origem dentro do ambiente familiar onde a educação infantil não foi devidamente acautelada. A escola de Mirandela foi a primeira a descartar-se, por isso, à semelhança do que aconteceu noutros países com casos semelhantes, deveria ser duramente responsabilizada, começando pelo autismo das chefias e reforçando a vigilância preventiva de todos os intervenientes do sistema educativo.
http://dylans.blogs.sapo.pt/
como te entendo... vivemos dias de pura angustia, dor infinita, indignação, raiva...
tal como eu - essas hesitaçoes de que falas no inicio do teu post.
acabei, eu, por nao conseguir escrever nada.
nao sei bem porquê.
porque me aflige muito, talvez.
porque fiquei chocadissima, certamente.
porque sou professora e sei que podemos vigiar, mas muito pouco para alem disso, fj.
alertamos, chateamos quem assim procede, podemos ate ameaçar - mas nada como uma ameaça, ou, mesmo, uma coça dada pelo pai de um aluno aos que lhe batem e torturam, para tudo ficar resolvido e nos eixos.
as vezes a escola pode tao pouco, fj. acredita em mim.
e isso é tao deprimente - a forma como se retirou autoridade á escola e respectivo poder de intervençao.
(mas digo-te: nao sei que pais sao aqueles que tiveram o miudo no hospital um ano antes e nao cuidaram de vigiar o mesmo tipo de comportamentos sobre ele; tendo ele um irmao gemeo na mesma turma, tendo ele varios primos na mesma escola, como nao sabiam os pais do que estava a accontecer? como nao tomaram medidas? como?)
e nao. nao acabei de incorrer em contradiçao
e tb nao sei que merda de executivo é aquele que nao fez nada nem deu por nada.
grainofsand, angústia, é realmente isso que sente, grande parte do tempo.
dylan, concordo quanto ao problema estar entranhado. e, como diz, não apenas ele está no local de trabalho ou na escola, o mais grave é o problema ter-se transformado num traço social. toda a sociedade - os media, os espaços de debate, os de lazer, os mecanismos de diálogo e de crítica social, estão impregnados de impulsos de supremacia sobre o outro. vencer, conseguir, esmagar, arrasar,... etc, etc..
tarde de mais, continuo eu a dizer, todos os estímulos apontam no mesmo sentido.
vigilância preventiva, é capaz de ser a única forma.
e seja bem vindo.
ssv,
aflige muito, de facto. sei que és professora e ansiava pelas tuas impressões. aflige-me muito a questão da autoridade. o polícia não tem de ter ar de mau para que ninguém se atreva a tirar-lhe o chapéu! à parte da autoridade natural que cada um é capaz ou não de impôr, é necessário o reconhecimento automático da Autoridade.
ser-me-ia muito difícil lidar com essa situação. por isso deve fazer algum sentido o que dizes, um apertão dado por gente de fora...
mais uma vez digo: vigilância, proximidade, e necessidade de que se fale, se fale, se fale.
(incorrer em contradição? que importância teria isso agora?)
olha, contando-te um cso pessoal.
há 3 anos, na minha turma mais que tudo, havia um miudo que era sempre alvo das brincadeiras dos outros, isto é, um grupo de 4 ou 5. bons miudos, todos, e se os outros o chateavam era para se divertirem. mas começaram a exagerar, na minha opiniao. demasiadas caroladas, demasiadas gozaçoes, e começou a ser notorio que o dito rapaz nao estava a gostar. que o estava a aborrecer ou, mesmo, a magoar interiormente.
peguei em mim e levei o caso a conselho de turma. insisti que era uma especie de bullying. que tnhamos de tomar medidas.
e pronto - a DT, que era bestial alias e com optima relaçao com a turma, falou com eles; eu gritei com eles; na reuniao com os pais falei pessoalmente com alguns dos rapazes em questao.
e foi remedio santo: vieram depois queixar-se 'oh professora entao foi falar ao meu pai? aquilo é tudo brincadeira!' 'pois, mas se quem é alvo dela já nao lhe acha piada, pára-se, nao achas?'
e la ficou resolvido, e, sinceramente, vendo-os agora no 12º ano, sei que sao todos amigos e o puto esta completamente integrado.
mas la esta: tudo concorreu - os miudos nao eram mal formados por si mesmos, os pais tambem nao e actuaram, e na minha escola os conselhos de turma funcionam.
final feliz.
eia, um sinal de esperança! e não, não estou a ser sarcástico!
obrigado pelo testemunho. é reconfortante esse relato, mas, como dizes, tudo concorreu. matéria-prima da boa, não é?
até a professora... :))
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